As mãos que se
esfregam entre elas, as pernas agoniadas e o medo de lhe faltarem as palavras
acompanham Carol*, de 15 anos, enquanto ela está frente à nossa equipe de
reportagem. Dois anos mais velha, a meia-irmã, Amanda*, percebe tudo com olhos
fixos, mas que não acompanham os lábios, trêmulos e ao mesmo tempo aparentando
uma tranquilidade que ali não existia. Também não era para menos, afinal as
duas denunciavam, naquela tarde quente de dezembro, a maior tristeza que já
tinham passado em suas vidas: o abuso sexual e moral praticado por duas
pessoas que tinham o dever justamente de protegê-las. Quem são eles? A mãe de
Carol e o pai de Amanda.
Os já acusados, e
agora procurados pelas autoridades da Bahia, são Analice de Jesus dos Santos,
de 33 anos, e o marido dela, Jacson Santos Pereira, de idade não informada.
Desde outubro de 2019 o casal não é mais visto no bairro do Lobato, Subúrbio
Ferroviário de Salvador. Foi naquele mês que a história chegou ao conhecimento
da população local, que queria, a todo custo, incendiar a casa onde eles
viviam, mas foi impedida. A Justiça oficial viria meses depois, afinal, o
mandado de prisão contra eles só foi emitido em abril de 2020, após apurações
da Polícia Civil e acompanhamento quase que diário da reportagem do Aratu
On.
As dolorosas
histórias de vida de Carol e Amanda se confundiram depois que Jacson
e Analice iniciaram um relacionamento. Amanda tinha nove anos quando
começou a ser abusada pelo pai. Analice, sabendo do crime, além de consentir,
permitiu que a própria filha mantivesse relações sexuais com o marido.
Ambas perderam a virgindade com Jacson.
"Na primeira
vez, ele disse que iria me ensinar como fazia e mandou a minha irmã mais nova
fazer sexo oral nele. Depois, disse que era minha vez, mas eu não
entendi", lembra Amanda. "Eu sentia amor de pai por ele. Hoje em dia,
isso dói demais em mim e me arrependo de ter desobedecido minha mãe, porque eu
sentia muito amor por meu pai. Depois que perdi a virgindade com ele [Jacson],
foi à minha casa, disse que eu tinha me ‘perdido’ com um menino, só que era
mentira. Minha mãe disse que não tinha visto nenhum namorado meu. Eu me sentia
triste demais. Quase entro em depressão".
E sim, essa história
pode ser ainda pior. Os crimes eram gravados e armazenados por Jacson e Analice.
Um pendrive contendo os arquivos foi entregue aos investigadores da Delegacia
Especializada de Repressão a Crime Contra a Criança e o Adolescente (DERRCA),
que ficaram, segundo os denunciantes, atônitos com o conteúdo. As meninas
contam que há imagens delas na cama com Jacson e Analice ao mesmo tempo, além
de relações com cada um deles, enquanto os abusos eram registrados pelo outro.
"Me relacionei com minha mãe, minha irmã e com Jacson ao mesmo tempo. Todo
mundo junto", frisa Carol.
Mas a Justiça ainda
não está completa. É que o casal, agora, é considerado foragido. Os mandados de
prisão foram encaminhados ao Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa
(DHPP) e ao Serviço de Polícia Interestadual (Polinter), por existir a suspeita
que os dois estão fora da Bahia.
PAIS BIOLÓGICOS
Neste momento da
reportagem você pode estar se perguntando: e o pai biológico de Carol. Onde
está? E a mãe biológica de Amanda? Eles sequer desconfiavam. Carol sempre
morou com a mãe. A jovem conta que Analice nunca insinuou nada antes do
casamento com Jacson. Mas ela mudou demais. "Antes dele, ela me dava amor
de mãe. Antes dele, ela nunca demonstrou nada. Ela mudou para pior. Se ele
[Jacson] me desse um celular de R$ 500, dava um de R$ 1.000 para ela, para me
ter como um objeto".
Por outro lado,
Amanda foi morar com o pai e a madrasta após um desentendimento com a mãe
biológica, a dona de casa Girlene da Anunciação de Jesus. Ele
oferecia celulares e brinquedos à filha e à enteada para que elas não
revelassem os crimes. Quando completou 15 anos e passou a entender melhor a
situação, Amanda pediu para voltar para a casa da mãe, que não sabia dos
abusos. Ela só teve coragem de denunciar dois anos depois.
"Eu tenho um namorado e não conseguia ter relações com ele, porque eu me sentia estranha. Ele perguntava e eu tinha medo de contar. Um dia, eu falei. Ele me prometeu que não iria contar pra ninguém, mas quando soube do ocorrido, me incentivou a contar pra minha mãe e procurar a polícia", relata a filha de Jacson Santos Pereira. Girlene confirma que tomou conhecimento da situação por meio do namorado da filha. No vídeo abaixo, ela desabafa sobre como se sentiu depois de saber os detalhes mais sórdidos da história.
Depois que
Amanda saiu da casa onde tudo acontecia, se distanciou de Carol*, que
continuou sendo abusada. Depois de sofrer mais, Carol* se mudou para a casa do
pai, o gari Alessandro Pereira Santos. Quando ele soube da situação que
envolvia a ex-companheira, Analice, também ficou revoltado. Ele foi
alertado dos crimes por Girleine, que já tinha prestado queixa na
Delegacia de Repressão a Crimes Contra o Adolescente (DERCCA), e registrou um
novo Boletim de Ocorrência.
"Eu perdi o
chão [quando recebeu a notícia], sendo sincero. Você criar filho para marginal
fazer o que bem quiser e achar que vai ficar por isso mesmo, não vai ficar. A
mãe dela fez isso e não vai ficar assim", desabafa o gari, que acredita na
fuga do casal para outro estado, onde familiares de Jacson teriam uma empresa.
Essa informação não foi confirmada pela polícia. No vídeo abaixo, o pai de
Carol destaca, ainda, como foram os anos de convivência
com Analice.
ABORTO
Carol chegou a
engravidar do padrasto. Com conivência da mãe, sofreu um aborto após tomar um
remédio comprado pelo casal. "É estranho. Eu vinha enjoando, enjoando e
minha mãe comprou um teste. Me levou para fazer um ultrassom e o bebê tinha dois
meses. Ele comprou uma 'garrafada' e não resolveu. Depois de uma semana, ele
comprou remédios para aborto. Colocou seis em mim. Depois, o feto desceu já
grande".
Com o crime
consumado, Analice levou a filha, que sentia dores, para o Hospital Sagrada
Família. "Perdi muito sangue e fiquei muito fraca. Tenho certeza que ele
[Jacson] era o pai do meu filho. Só ele me abusava. Perdi minha virgindade com
ele, aos 13 anos", testemunha a garota. Na unidade de saúde, de acordo com
os relatos registrados pelos médicos, Carol apresentava quadro febril e
sangramento genital.
JUSTIÇA E INVESTIGAÇÕES
Também por conta do
aborto, o Ministério Público da Bahia entrou com pedido de prisão formulado
após inquérito da Polícia Civil. Em abril de 2020, o Tribunal de Justiça da
Bahia expediu mandado contra a dupla pelo crime de aborto provocado por
terceiro.
Na decisão, a juíza
Gelzi Maria Almeida Souza entendeu que os depoimentos das irmãs “são
suficientes para demonstrar indícios de autoria e materialidade do fato. É
evidente que se trata de juízo provisório a respeito da existência da infração
penal e sua autoria, a demandar instrução criminal", declarou em parte da
decisão.
"Todavia, como
a justa causa faz parte de uma das condições da ação penal, só caberá
desconsiderar as informações reunidas durante a investigação quando as provas
forem produzidas em juízo, sob o crivo do contraditório. Assim, estando
presentes os requisitos exigidos no art. 41 do CPP, para deflagração de ação
penal, recebo denúncia oferecida contra Jacson Santos Pereira e Analice de
Jesus dos Santos”, contrapôs.
A promotora do MP da
Bahia, Armênia Cristina Santos, denunciou, ainda, Jacson e Analice
pelo crime de estupro. O MP quer que marido e esposa sejam enquadrados no
artigo 240 do Estatuto da Criança e do Adolescente.
Pela lei, é crime
"produzir, reproduzir, dirigir, fotografar, filmar ou registrar, por
qualquer meio, cena de sexo explícito ou pornográfica, envolvendo criança ou
adolescente". Somente por essa situação, os dois podem pegar entre quatro
a oito anos de prisão. E não para por aí. Ainda de acordo com o ECA, a pena dos
dois pode ser aumentada em 1/3, afinal eles usaram "de relações de
parentesco consanguíneo ou afim até o terceiro grau" para os abusos.
Mas não foi fácil
intimar Jacson e Analice. De acordo com o MP, eles só seriam considerados
procurados após um oficial de Justiça não encontrá-los em pelo menos um
endereço. Por conta da pandemia da Covid-19, porém, essa ação ficou engavetada
entre abril e julho, travando o trabalho da polícia. Somente em outubro, os
mandados de prisão foram encaminhados ao DHPP e à Polinter.
Por sua vez, a
Polícia Civil está com o pendrive com as filmagens. São cerca de 50 vídeos
mostrando relações com Amanda e Carol. As meninas alegam que há um outro
dispositivo de armazenamento, com mais 20 arquivos, também em mãos das
autoridades. A titular da DERRCA, Diana Lima, confirmou, durante o período de
apuração desta reportagem, que acompanhou a situação até o pedido de prisão de
Jacson e Analice.
Agora, para aliviar
um pouco o desespero de Carol, Amanda, Girlene e Alessandro, Jacson e Analice
estão na mira da Justiça e devem, o quanto antes, ser localizados. "Quero
que eles dois sejam presos, né?! A situação foi feia", complementa Carol*.
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